POLÍTICA

Pedido de desculpas do Estado é pouco para os povos indígenas, diz Ailton Krenak à CNN

O Estado brasileiro tem alternado entre “mordidas e assopradas” em relação aos indígenas e seus interesses e direitos nos últimos anos. Hoje, porém, eles têm vivido o seu momento mais expansivo: não mais se integrando, mas em uma busca de formar parte da sociedade.

A avaliação acima é de Ailton Krenak, de 70 anos, uma das mais reconhecidas vozes na luta dos povos indígenas brasileiros, poeta, ambientalista, filósofo, poeta e escritor.

Na sexta-feira (19), oportunidade em que se celebrou o Dia dos Povos Indígenas, Ailton concedeu entrevista à CNN por videochamada.

Recentemente, Ailton Krenak se tornou o primeiro indígena a tomar posse de uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), instituição na qual o escritor quer, de acordo com a sua avaliação, não se integrar ao seu modus operandi, mas expor suas vivências e saberes e intercambiá-los com seus pares.

Confira a entrevista de Ailton Krenak à CNN:

CNN: Como o senhor avalia a atuação dos Três Poderes nas questões indígenas hoje?

Ailton Krenak: O Estado brasileiro projeta para a vida dos povos indígenas o mesmo prejuízo ambiental, social e ecológico que faz para os outros povos desprotegidos que lutam por terra, água, respeito e liberdade. Nesses últimos 30 anos, desde a Constituição de 1988, o Estado tem mordido e assoprado. Agora, ele está assoprando.

E de que forma o Estado estaria “assoprando”?

Há três anos, um chefe de governo [o ex-presidente Jair Bolsonaro] disse: “nós não vamos dar um centímetro de terra para esses índios”. E o ministro dele [o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub] falou: “eu odeio a palavra ‘povos indígenas’”. Agora, nós estamos na Semana dos Povos Indígenas, depois de uma retratação histórica do Estado brasileiro pedindo perdão aos povos Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul e Krenak no médio (curso) do Rio Doce, em Minas Gerais [neste mês, a Comissão da Anistia formalizou um perdido de desculpas formal por crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra estes povos durante a ditadura militar].

Mas pedido de desculpas e perdão é pouco: a União precisa avançar numa política reparatória dos danos históricos e mordidas duradouras da história, e não apenas de um episódio recente, que foi a última ditadura que o Brasil discute. Nós, povos indígenas, sempre vivemos em ditaduras. Precisamos discutir todas elas

E como o Estado poderia agir para que a reparação seja plena?

Hoje, temos uma Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas para os governos regionais onde há população nativa, como Austrália e Nova Zelândia, Estados Unidos e também os da América Latina – há países na região que têm de 60% a 70% da população indígena. Esses países têm dificuldades de promover relações duradouras e benéficas para os seus povos originários porque a natureza do Estado colonial é morder. O Estado colonial é um cachorro de dente grande.

No Brasil, com o atual governo, tivemos a criação do Ministério dos Povos Indígenas. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) agora é ocupada por uma mulher Wapichana. É possível encontrar alguma solução dentro desse Estado colonial?

O Estado ainda está atrasado nas reparações históricas. Ele por enquanto, ainda está criando instituições internas para ser capaz de fazer ações dirigidas ao objeto da sua atenção. É claro que esse governo quer melhorar o trabalho dele com a educação, com os direitos dos povos indígenas, com os direitos dos povos da diáspora. A gente está vendo isso. Não precisamos ficar caçando ‘coisinha’ para criticar o governo.

É o segundo ano em que é celebrado o Dia dos Povos Indígenas com este nome institucional, e não mais como Dia do Índio. Como essa mudança reflete os recentes debates e acontecimentos em relação aos povos indígenas no Brasil?

A gente sobreviveu à tentativa de extermínio nos últimos anos. Os indígenas não querem mais se autoidentificarem como índios. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) batia na porta das pessoas indígenas e perguntava: “você é índio, mulato, pardo, preto ou branco?”. Com o tempo, mudou-se a pergunta: “de que povo você é?”. “Índio” deixou de ter sentido, porque agora as pessoas sabem dizer qual a sua etnia. A grande maioria do 1,7 milhão declarados indígenas no Brasil sabe de onde é.

Os povos indígenas estão em um movimento histórico de reparação. Talvez hoje estejamos vivendo o melhor momento da história recente dos povos indígenas, o período mais expansivo e criativo na relação dos povos indígenas com outras comunidades humanas. Temos um diálogo muito forte com as academias, há uma presença indígena nas universidades brasileiras que, hoje, é inquestionável. Estamos mostrando a nossa determinação por continuar valorizando nossos próprios modos de vida, nossas línguas, nossa cultura, nossa narrativa e nossa história diante da constante ameaça do Estado brasileiro de mudar de assunto, de tom de voz, e dizer “não gosto de ouvir a expressão ‘povos indígenas’”.

O senhor se tornou o primeiro indígena a integrar a Academia Brasileira de Letras (ABL). O que isso representa para a literatura brasileira, a sociedade e os povos indígenas?

Minha entrada na ABL representa uma disposição dessas instituições acadêmicas e algumas do Estado de absorver a presença indígena. No passado, existia a “integração”, uma coisa ofensiva. Você não pode integrar as pessoas, nas suas culturas diversas, em uma mesma cultura: isso é uma violência em vários sentidos. As legislações internacionais e nacionais não admitem mais esse tipo de tratamento ofensivo contra um povo.

Você não pode integrar ninguém: tem, sim, que respeitar a diversidade e a pluralidade dos povos e criar uma governança capaz de interpretar esses anseios. Isso é uma democracia, e o contrário disso é ditadura. E nós estamos interessados na democracia de verdade, e não em uma de papo furado.


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